sexta-feira, 20 de dezembro de 2024
No mesmo dia
«Em Portugal existem hoje, e existiram sempre, nas últimas décadas, muitos cidadãos – alguns até já estiveram regularizados, mas que por falta de um documento ainda não se conseguiram voltar a regularizar, revalidar a sua autorização de residência – que, durante algum tempo, se encontram em situação irregular. Quer o PSD que os filhos desses cidadãos não se vacinem, não possam ir ao médico de família, não possam ir a consultas? Ou quer, ou não quer. A nossa pergunta é simples: o PSD quer fazer com que cidadãos, que ainda não têm a sua situação regularizada e precisam, por exemplo, de um acompanhamento de diabetes, não tenham esse acompanhamento e acabem na urgência porque tiveram um AVC, ou tiveram um ataque cardíaco? Aí a serem atendidos e a serem muito mais caros ao SNS? É essa a pergunta. E por isso eu reafirmo: o Partido Socialista defende o SNS tal como ele foi pensado. E foi pensado para atender todos os que residem no nosso país. Combater a fraude, totalmente disponíveis. Melhorar o processo de cobrança, totalmente disponíveis. Criar bolsas de exclusão na nossa sociedade, não aceitamos. A ação conjunta do fim da manifestação de interesse, daquilo que aqui hoje aprovam, e daquilo que querem aprovar amanhã sobre a impossibilidade de as juntas de freguesia terem os seus certificados que confirmem a residência, provocará círculos de exclusão, de pobreza, de falta de acesso ao SNS, que todos, todos vamos pagar».
Mariana Vieira da Silva (intervenção no debate sobre o acesso ao SNS por cidadãos estrangeiros)
Ontem, no mesmo dia em que o governo instruiu as forças de segurança a desenvolver uma operação policial no Martim Moniz, intencionalmente aparatosa e descabida nos seus contornos, destinada apenas a fomentar a relação, inexistente, entre criminalidade e imigração, alimentando falsas perceções, AD e Chega aprovavam no parlamento regras que dificultam o acesso de imigrantes em situação não regularizada ao SNS.
Não se trata, como a direita tentou fazer crer, de responder à questão do «turismo de saúde». Aos estrangeiros que se deslocam a Portugal apenas para usufruir, indevidamente e sem pagar, cuidados não urgentes do SNS. Essa foi apenas a cortina de fumo, o pretexto para a amálgama deliberada - e politicamente nada inocente (ou não estivesse o governo a disputar eleitorado do Chega) - entre imigrantes residentes e estrangeiros pontuais.
Está tudo ligado e o diabo está nos detalhes. No caso do acesso ao SNS, com a supressão - na proposta apresentada pelo PSD e CDS-PP, ontem aprovada por estes partidos e pelo Chega - de uma pequena frase (sombreada a amarelo, na imagem) da nova Lei de Bases da Saúde, que foi aprovada por toda a esquerda em 2019.
Estado policial
Chega e IL são criaturas das frações mais reacionárias do capital, apostadas em subverter o que resta do regime democrático e do Estado social que é a sua base. O PSD não se distingue destas forças políticas, como ontem ficou patente, numa operação chocante e destinada a criar alarme social: menos Estado social, mais Estado policial, sabemos há muito.
quinta-feira, 19 de dezembro de 2024
A nebulosa de números e um banho de realidade
Aqui chegados, sobrou a confusão total. Com a contabilidade criativa e a manipulação de dados para simular os resultados pretendidos, o ministério da Educação chega ao final do 1º período sem ser capaz de responder, de forma clara, a duas coisas simples: quantos alunos terminaram este período sem aulas a pelo menos uma disciplina e, nesse universo, quantos deles não têm aulas a pelo menos uma disciplina desde o início do ano letivo.
Quer isto dizer que não há números? Não. A questão é que são valores sempre colados a um «mas», a um detalhe difuso, a um qualquer «mormente» que impede comparações consistentes. No último debate quinzenal, por exemplo, Luís Montenegro afirmou, em resposta a Pedro Nuno Santos, que eram 26 mil os alunos sem aulas a uma disciplina «de forma não permanente». Isto é, «que se confrontaram com a circunstância de não ter professor a uma disciplina», em algum momento desde o início do ano letivo.
Na mesma resposta, o Primeiro-Ministro disse serem 878 os alunos que, «de forma permanente», não tinham professor a uma disciplina desde o início do ano, contando-se «o aluno tantas vezes quantas as disciplinas a que não tem professor». Logo aqui, erro grosseiro: quando se conta o aluno «tantas vezes quantas as disciplinas a que não tem professor», a unidade da medida deixa de ser o número de «alunos» e passa a ser o número de «disciplinas». Que alguém como Fernando Alexandre, vindo «da academia», não perceba isto, é um mistério.
Apesar da dificuldade atual em estabelecer comparações, dada a nebulosa de critérios e valores que o governo criou - da inflação de alunos sem aulas em setembro de 2023 às contas feitas com universos diferentes (ponderando alunos sem aulas num dado momento com alunos sem aulas desde o início do ano), pode fazer-se uma aproximação. Como sugere o gráfico aqui em cima, a situação pouco ou nada se alterou face ao ano passado, havendo mais alunos sem aulas e, eventualmente, um menor número de alunos sem aulas desde o início do ano letivo.
Sendo que, porém, as estimativas da Fenprof e da Missão Escola Pública convergem num valor: são cerca de 2 mil os alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina desde o início do ano letivo. Ou seja, em linha com o valor do ano passado e bem acima dos 878 referidos pelo Primeiro-Ministro (com a agravante de esse valor contabilizar disciplinas, e não alunos, sem professor). Eis pois que, mesmo sem assumir o fracasso das medidas e do objetivo que fixou, Fernando Alexandre reconhece, finalmente, que o problema é estrutural, não se resolvendo com a simples mudança de governo, como chegou a sugerir Luís Montenegro, em setembro do ano passado. Nada como um banho de realidade.
Quer isto dizer que não há números? Não. A questão é que são valores sempre colados a um «mas», a um detalhe difuso, a um qualquer «mormente» que impede comparações consistentes. No último debate quinzenal, por exemplo, Luís Montenegro afirmou, em resposta a Pedro Nuno Santos, que eram 26 mil os alunos sem aulas a uma disciplina «de forma não permanente». Isto é, «que se confrontaram com a circunstância de não ter professor a uma disciplina», em algum momento desde o início do ano letivo.
Na mesma resposta, o Primeiro-Ministro disse serem 878 os alunos que, «de forma permanente», não tinham professor a uma disciplina desde o início do ano, contando-se «o aluno tantas vezes quantas as disciplinas a que não tem professor». Logo aqui, erro grosseiro: quando se conta o aluno «tantas vezes quantas as disciplinas a que não tem professor», a unidade da medida deixa de ser o número de «alunos» e passa a ser o número de «disciplinas». Que alguém como Fernando Alexandre, vindo «da academia», não perceba isto, é um mistério.
Apesar da dificuldade atual em estabelecer comparações, dada a nebulosa de critérios e valores que o governo criou - da inflação de alunos sem aulas em setembro de 2023 às contas feitas com universos diferentes (ponderando alunos sem aulas num dado momento com alunos sem aulas desde o início do ano), pode fazer-se uma aproximação. Como sugere o gráfico aqui em cima, a situação pouco ou nada se alterou face ao ano passado, havendo mais alunos sem aulas e, eventualmente, um menor número de alunos sem aulas desde o início do ano letivo.
Sendo que, porém, as estimativas da Fenprof e da Missão Escola Pública convergem num valor: são cerca de 2 mil os alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina desde o início do ano letivo. Ou seja, em linha com o valor do ano passado e bem acima dos 878 referidos pelo Primeiro-Ministro (com a agravante de esse valor contabilizar disciplinas, e não alunos, sem professor). Eis pois que, mesmo sem assumir o fracasso das medidas e do objetivo que fixou, Fernando Alexandre reconhece, finalmente, que o problema é estrutural, não se resolvendo com a simples mudança de governo, como chegou a sugerir Luís Montenegro, em setembro do ano passado. Nada como um banho de realidade.
quarta-feira, 18 de dezembro de 2024
Mais que uma crise de habitação
Um dos gráficos essenciais do recente estudo da Causa Pública («Portugal tem uma das maiores crises habitacionais da Europa»), coordenado por Guilherme Rodrigues, é o que estabelece relação, desde 1995, entre o rendimento médio disponível das famílias e o preço médio da habitação. Desde logo por evidenciar que a deterioração da capacidade de acesso a um alojamento para viver tem início em 2013, invertendo a tendência favorável registada até então.
Este indicador deveria ser suficiente para fazer refletir todos quantos incorrem no simplismo dominante de interpretar a atual crise como resultando de uma mera falta de casas. Por um lado, pelo facto de não se terem registado alterações em termos demográficos (procura) e do parque habitacional (oferta) que justifiquem o aumento vertiginoso dos preços. Por outro, porque a própria lógica de funcionamento do mercado, quando encarada com um desprezo olímpico pelas novas procuras de habitação, não colhe: se os rendimentos estagnam, não deveria o preço das casas diminuir?
Aludindo à relevância decisiva das novas procuras, sem as quais não é sequer possível interpretar, de forma adequada, a génese da atual crise habitacional (e, portanto, adotar as respostas que contribuem para a superar), o estudo da Causa Pública assinala ainda uma dimensão essencial que tem sido negligenciada. Isto é, o facto de não estarmos apenas perante uma crise circunscrita à incapacidade de assegurar o acesso generalizado a um alojamento, mas antes perante uma crise que transborda para lá dessa questão, já de si fundamental.
De facto, a crise de habitação que estamos a viver atravessa a própria economia, não só pela relevância que as atividades ligadas ao setor imobiliário e ao turismo adquiriram, mas também pelas dificuldades criadas na capacidade para atrair e fixar trabalhadores do setor público e privado, sobretudo nas áreas onde a subida de preços - e o desfasamento face aos salários - é mais pronunciada. Por outras palavras, já não é só a questão da habitação que está em causa, mas sim, também, o próprio modelo de desenvolvimento económico e social do país.
Este indicador deveria ser suficiente para fazer refletir todos quantos incorrem no simplismo dominante de interpretar a atual crise como resultando de uma mera falta de casas. Por um lado, pelo facto de não se terem registado alterações em termos demográficos (procura) e do parque habitacional (oferta) que justifiquem o aumento vertiginoso dos preços. Por outro, porque a própria lógica de funcionamento do mercado, quando encarada com um desprezo olímpico pelas novas procuras de habitação, não colhe: se os rendimentos estagnam, não deveria o preço das casas diminuir?
Aludindo à relevância decisiva das novas procuras, sem as quais não é sequer possível interpretar, de forma adequada, a génese da atual crise habitacional (e, portanto, adotar as respostas que contribuem para a superar), o estudo da Causa Pública assinala ainda uma dimensão essencial que tem sido negligenciada. Isto é, o facto de não estarmos apenas perante uma crise circunscrita à incapacidade de assegurar o acesso generalizado a um alojamento, mas antes perante uma crise que transborda para lá dessa questão, já de si fundamental.
De facto, a crise de habitação que estamos a viver atravessa a própria economia, não só pela relevância que as atividades ligadas ao setor imobiliário e ao turismo adquiriram, mas também pelas dificuldades criadas na capacidade para atrair e fixar trabalhadores do setor público e privado, sobretudo nas áreas onde a subida de preços - e o desfasamento face aos salários - é mais pronunciada. Por outras palavras, já não é só a questão da habitação que está em causa, mas sim, também, o próprio modelo de desenvolvimento económico e social do país.
Elogio
Graças à economia política soberanista de Jaques Sapir, por exemplo, sabemos que sem fronteira política, economicamente relevante, não há responsabilização democrática, nem capacidade de pilotar democraticamente a economia.
Não é por acaso que os neoliberais sempre procuram erodir o impacto económico da fronteira política, meio crucial de erosão da democracia. Os capitalistas, num contexto de fronteiras abertas a todos os fluxos pela liberalização, atiram os trabalhadores de diferentes países uns contra os outros, numa corrida para o fundo.
Quem se recusar a pensar a fronteira, a explorar as suas virtudes, corre o risco de a deixar entregue aos inimigos da democracia, alimentados pelo neoliberalismo e pelas suas consequências reacionárias.
segunda-feira, 16 de dezembro de 2024
Um congresso arreliador
Essa União Europeia que é cada vez mais um instrumento e espaço de domínio dos monopólios, determinada pelas grandes potências capitalistas europeias, elas mesmas alinhadas e subordinadas à estratégia dos EUA e da NATO. Se dúvidas houvesse, aí está a promoção do aumento das despesas militares e da indústria do armamento à custa da Paz, dos direitos e das condições de vida dos trabalhadores e dos povos. Um militarismo insaciável e desumano que leva já o actual secretário-geral da NATO a atrever-se a propor que se corte nos orçamentos da saúde e das pensões de reforma para gastar mais no armamento e na guerra.
O País tem recursos, meios, forças e gente séria capaz de construir a vida melhor que a maioria justamente ambiciona. O País precisa de responder à emergência nacional do aumento significativo dos salários e das pensões, precisa de combater a chaga da precariedade, de valorizar carreiras e profissões, precisa de respeitar quem trabalha e trabalhou uma vida inteira. O País precisa de pôr fim aos benefícios fiscais, às privatizações, à corrupção e pôr fim, de uma vez por todas, à rapina de recursos públicos por parte dos que se acham donos disto tudo.
Excertos representativos das intervenções de Paulo Raimundo, na abertura e no encerramento do último Congresso do PCP. Tendo tido a oportunidade de ler as teses, aceitei o convite para assistir aos trabalhos comunistas. Não dei o meu tempo por perdido, antes pelo contrário, até porque levei um banho de realidade.
A seguir ao discurso de abertura de Raimundo, discursou Inês Santos de Rio Maior. Falou da luta nas carnes Nobre, onde trabalha, das sucessivas greves por melhores salários e condições de trabalho, da necessidade de organizar e de consciencializar.
Pelo meio, falou Ana Cristina Pejapes, operária conserveira e dirigente sindical em Peniche, numa empresa de 800 trabalhadoras: “trabalho na ESIP há 34 anos, 40 horas por semana, trabalho aos ritmos que as máquinas mandam e estou sujeita a temperaturas elevadas, com tanta humidade que às vezes parece que nos chove em cima”. E isto para auferir o salário mínimo. Mas “lá na empresa há organização sindical”. Enquanto houver organização, há esperança, incluindo na luta contra a precariedade, com 60 trabalhadoras precárias que passaram a estar integradas nos quadros da empresa.
A verdade é que sem a vontade e a coragem comunistas, ainda menos, ou nenhuns, entrariam para lá das portas onde se diz “proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço”, ali onde de cria a riqueza e onde vigora, na ausência de ação coletiva, o mais liberticida despotismo patronal, a mais cavada das desigualdades, que tudo contagia e de forma tão antidemocrática.
Há uma correlação entre a militância comunista e a organização dos trabalhadores, isso fica claro para quem quiser olhar, ver e reparar. E como disse Jorge Cordeiro: “entre o querer e o poder do grande capital, há esse pormenor arreliador que é a luta dos trabalhadores”.
Habitação: mais um sinal do agravamento da crise
Acumulam-se os sinais, sendo talvez já mais adequado dizer que se trata de uma evidência: com as medidas adotadas pelo atual governo, como os incentivos à aquisição de habitação e o fim das restrições ao Alojamento Local, a crise aprofundou-se, com os valores de aquisição e arrendamento a regressar a ritmos de aumento mais elevados.
Um recente sinal é dado pelos valores da avaliação bancária, a regressar à tendência de subida, depois de uma fase de estagnação no final de 2023. Se em fevereiro de 2024 a mediana rondava os 1.550€ por m2, em outubro aproxima-se dos 1.700€, confirmando o reconhecimento, por parte da ministra da Juventude e Modernização, de que as medidas adotadas pelo governo, poderiam acabar por fazer subir o preço das casas.
É este o sentido de declarações de agentes do setor ao DN. Beatriz Rubio, da REMAX, assinala que se tem «assistido a um aumento dos preços, na maioria das regiões, e assim fecharemos o ano de 2024». Rui Torgal, da ERA, refere que o preço médio dos imóveis mediados pela marca aumentou 11% face ao final de 2023. Marco Tairum, da Keller Williams, interpreta o aumento da procura, induzido pelas políticas de apoio aos jovens, como «uma reação natural do mercado», considerando que «a evolução dos preços em 2025 será inevitavelmente crescente».
De facto, o simples anúncio, pelo governo, da inversão da política habitacional - com retrocessos na regulação e aposta em medidas de subsidiação, nomeadamente ao nível da aquisição por jovens - terá sido suficiente para aumentar a procura e impulsionar os preços (a ponto de absorver os benefícios resultantes da isenção de IMT e Imposto de Selo, que já de si beneficiam apenas uma minoria). Ou seja, o governo que diz ter como prioridade o combate à emigração jovem é o mesmo governo que deteriora as condições materiais para que os jovens optem por ficar no país.
Um recente sinal é dado pelos valores da avaliação bancária, a regressar à tendência de subida, depois de uma fase de estagnação no final de 2023. Se em fevereiro de 2024 a mediana rondava os 1.550€ por m2, em outubro aproxima-se dos 1.700€, confirmando o reconhecimento, por parte da ministra da Juventude e Modernização, de que as medidas adotadas pelo governo, poderiam acabar por fazer subir o preço das casas.
É este o sentido de declarações de agentes do setor ao DN. Beatriz Rubio, da REMAX, assinala que se tem «assistido a um aumento dos preços, na maioria das regiões, e assim fecharemos o ano de 2024». Rui Torgal, da ERA, refere que o preço médio dos imóveis mediados pela marca aumentou 11% face ao final de 2023. Marco Tairum, da Keller Williams, interpreta o aumento da procura, induzido pelas políticas de apoio aos jovens, como «uma reação natural do mercado», considerando que «a evolução dos preços em 2025 será inevitavelmente crescente».
De facto, o simples anúncio, pelo governo, da inversão da política habitacional - com retrocessos na regulação e aposta em medidas de subsidiação, nomeadamente ao nível da aquisição por jovens - terá sido suficiente para aumentar a procura e impulsionar os preços (a ponto de absorver os benefícios resultantes da isenção de IMT e Imposto de Selo, que já de si beneficiam apenas uma minoria). Ou seja, o governo que diz ter como prioridade o combate à emigração jovem é o mesmo governo que deteriora as condições materiais para que os jovens optem por ficar no país.
domingo, 15 de dezembro de 2024
Cristo em Gaza
«Há dias li uma reportagem sobre a desgraça que se abateu sobre Israel agora porque não há turistas. Era uma daquelas reportagens que quase parece gozar connosco, de tanta falta de noção. Mas era tudo genuíno, desgraça genuína, desolação genuína. Bolha genuína.
Entretanto, milhões de palestinianos que mal viviam de algumas lojas, e alguns hotéis, vivem do nada agora, com a diferença de serem reféns de Israel. De estarem a morrer em Gaza, e a serem queimados, roubados, assassinados por colonos na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. De não terem um Estado. De serem milhões de reféns de Israel, em vez de 100 reféns do Hamas.
(…) Não sei quando o turismo vai voltar à Terra Santa. Este Natal volta a não haver Árvore em Belém. As ruas continuam desertas, as portas fechadas. Só que com muito mais mortos do que há um ano. Muito mais pobres. Muito mais emigrados (quem pôde).
(…) A Terra Santa não é do Estado de Israel. Natal não é quando Israel quiser. Este Natal, como o anterior, é uma vala comum. Muitos cristãos se angustiam, sei bem, muitos têm feito muito contra. Mas onde estão todos os outros? Esse quase terço do mundo desde 7 de Outubro?»
Alexandra Lucas Coelho, Cristo está morto em Gaza, e não vai nascer sozinho
sábado, 14 de dezembro de 2024
Salutar pluralismo
Pode ser impressão minha, embora creia não ser o caso. Pelo menos ontem, a SIC Notícias fez vários diretos para o Congresso do PCP, ao longo do dia, à semelhança da cobertura que faz de outros congressos partidários. É de saudar, claro, sobretudo por se tratar do partido português com menos presença nos debates televisivos, num défice de pluralismo já de si significativo, a favor da direita, na generalidade dos canais privados de televisão.
sexta-feira, 13 de dezembro de 2024
O que um ano de liberalismo à Milei trouxe aos argentinos
Há um ano, o resultado das eleições argentinas foi visto com surpresa por uns e entusiasmo por outros. A eleição de Javier Milei, que se descreveu como “anarco-capitalista” e fez campanha com uma motosserra para simbolizar os cortes que pretendia implementar no Estado, foi aplaudida pelos investidores internacionais e saudada por segmentos importantes da direita devido às profundas reformas prometidas. Um ano depois, é importante olhar para o que têm sido os resultados desta estratégia.
Depois de ter sido eleito, Milei não perdeu muito tempo a pôr em prática o seu plano. Os cortes no orçamento do Estado afetaram quase todas as áreas, da Saúde à Educação e à investigação científica, e incluíram o despedimento de milhares de trabalhadores do setor público. Além disso, levou a cabo um conjunto de reformas abrangentes com o objetivo de liberalizar a economia, promover a iniciativa privada e atrair investimentos.
Os cortes parecem ter sido suficientes para a Argentina passar a registar um excedente orçamental, depois de, no ano passado, ter tido um défice de 4,4% do PIB. Por outro lado, a taxa de inflação mensal tem vindo a diminuir e situa-se agora nos 2,4%. Estes números valeram a Milei elogios de instituições como o FMI e de uma parte da imprensa internacional. Por cá, o Instituto +Liberdade publicou um artigo em que se elogiam os “sinais de recuperação” visíveis em indicadores como o índice de produção industrial e o volume das exportações, ainda que se admita que a “situação social permanece sensível” – o que é um forte candidato a eufemismo do ano.
O problema é que nem todos os números contam uma história tão positiva. A taxa de pobreza, que andava em torno dos 40% quando Milei tomou posse, disparou ao longo do ano e atingiu uns impressionantes 52,9%, o que significa que, só este ano, 3,4 milhões de argentinos foram empurrados para a pobreza. Dois terços das crianças no país vivem sob pobreza, o que não impediu o presidente de cortar o orçamento destinado ao apoio aos mais vulneráveis, incluindo através da distribuição de alimentos em cantinas comunitárias.
Outro grupo especialmente afetado pelos cortes de Milei são os pensionistas. A fórmula de atualização das pensões definida pelo governo impôs uma perda de poder de compra significativa para os reformados. Quando o Congresso tentou compensar esta perda através de um aumento extraordinário, Milei vetou a lei e chamou aos congressistas “degenerados orçamentais”.
Os cortes no orçamento da Saúde estão a colocar em causa a capacidade de prestar os cuidados necessários à população. A agência Reuters dá conta do desinvestimento na prevenção de doenças graves e da redução dos medicamentos disponíveis para o tratamento dos pacientes.
O investimento em ciência e tecnologia colapsou e atingiu os níveis mais baixos desde a restauração da democracia no país, em 1983. Além dos cortes no financiamento das instituições públicas, também houve cortes salariais e uma redução acentuada das bolsas de estudo, o que, de acordo com as instituições do setor, está a incentivar a emigração dos jovens nestas áreas.
Com os cortes nos subsídios do Estado à energia e aos transportes, o custo dos serviços públicos disparou. De acordo com um relatório do Interdisciplinary Institute of Political Economy, o valor que uma família de classe média gasta, por mês, em eletricidade, gás, água e transportes públicos passou de 30,105 pesos no final do ano passado para 141,543 pesos em setembro deste ano. A poupança para os cofres do Estado foi atingida à custa de um agravamento das condições de vida para a maioria dos argentinos.
Face a este cenário desastroso, há quem argumente que estas eram medidas dolorosas mas necessárias. Só que 2024 está longe de ser um ano de sucesso para a economia argentina. Muito pelo contrário: na primeira metade do ano, a economia contraiu mais do que se esperava e a Argentina entrou em recessão técnica. O desemprego, que se encontrava nos 6,1% no final de 2023, aumentou para 8,2% até outubro deste ano. A austeridade agravou substancialmente a crise em que o país se encontra mergulhado.
A amnistia fiscal aprovada por Milei encorajou os mais ricos do país a depositar as poupanças que detinham em offshores ou guardadas em casa, o que atraiu 18 mil milhões de dólares para os bancos argentinos e permitiu acumular reservas de moeda estrangeira. No entanto, as reservas continuam a ser insuficientes para cumprir os pagamentos da dívida e o país continua dependente do FMI.
Em simultâneo, a desigualdade agravou-se: o índice de Gini, que mede a desigualdade de rendimento num país e que varia entre 0 (igualdade máxima) e 1 (desigualdade máxima), aumentou para o valor mais alto desde 2005. A austeridade provocou uma quebra de rendimento e poder de compra bastante mais acentuada para quem ganha menos, aumentando o fosso para os mais ricos.
A estratégia orçamental socialmente repressiva é conjugada, sem grande surpresa, com o negacionismo climático. Milei cortou o orçamento destinado à proteção ambiental, tentou remover regulações que definem áreas protegidas e aprovou o Regime de Incentivo a Grandes Investimentos, desenhado para acelerar a exploração de recursos naturais. Ao longo do último ano, têm sido várias as tentativas de reduzir regulações e entraves que permitam ao Estado leiloar terrenos pertencentes a comunidades indígenas para a exploração de cobre e outros minérios por parte de empresas privadas.
Há problemas estruturais que a economia argentina enfrenta há décadas e que não podem ser atribuídos à gestão do último (ou dos últimos) anos. No entanto, a estratégia liberal de Milei para conter a inflação tem consistido em promover o colapso da economia e aumentar os níveis de pobreza e desigualdade. Descrever esta experiência como um sucesso é revelador das prioridades de quem o faz.
O economista argentino Matías Vernengo resume os problemas da estratégia de Milei: “O desemprego e a pobreza estão a aumentar e a austeridade está a ter um impacto social terrível – mas também temos de olhar para o futuro da economia, já que o presidente Milei está a cortar significativamente o investimento público, o que tem um efeito bastante negativo no longo prazo. […] Estão a construir um país que só é rentável para alguns”.
Em resumo
É o fundamentalismo de mercado em todo o seu esplendor inigualitário: a visão do Livro Verde que anuncia favorecer a sustentabilidade da Segurança Social apenas promove a redução dos custos do trabalho para o empregador, pretende pôr o Estado a organizar para os privados o mercado das pensões e procura acabar com o direito (universal e incondicional) a uma pensão mínima na reforma, que previne a pobreza, para o substituir por complementos selectivos para idosos pobres.
Reduzir os impostos das empresas que mais ganham, nos sectores com menor potencial de transformação da economia, privando o Estado das receitas de que os serviços públicos e o investimento precisam. Acenar aos jovens com medidas de que a maioria não poderá beneficiar, por exemplo, face à crise da habitação, ou que até lhes podem aumentar a precariedade. Promover alterações na Segurança Social ou na contratualização de seguros de saúde para favorecer mercados privados. A partir do Estado, a reconfiguração neoliberal do país acentua-se.
A forma e o papel dos Estados é, em particular nas economias periféricas, essencial para se pensar as escolhas de sociedade. No caso português, a inserção na arquitectura europeia, que transforma o «Estado-nação» em «Estado-membro», faz-se acompanhar por uma «integração pela desintegração», visível, por exemplo, nas diferenças salariais. Por aqui passa também a crise democrática actual, em que os Estados são esvaziados e endurecidos.
Três resumos de três artigos importantes de economia política e de política económica que sairam no Le Monde diplomatique - edição portuguesa, da autoria, respetivamente, de Maria Clara Murteira, Vicente Ferreira e Catarina Príncipe.
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quarta-feira, 11 de dezembro de 2024
Hoje, conferência Praxis sobre o Livro Verde do Sistema Previdencial
Promovida pela Praxis, pretende-se que a sessão constitua «uma contribuição para que participemos de modo ativo e informado no debate deste Livro Verde colocado pelo Governo em apreciação pública. Está em causa a defesa e o desenvolvimento de um dos principais, mais sólidos e estáveis pilares do Estado Social, a Segurança Social pública. E precisamos barrar o caminho aos que, a pretexto da (in)sustentabilidade do sistema previdencial mais não querem que limitar os benefícios e favorecer a apropriação privada das suas contribuições e economias.
O conteúdo das 18 recomendações principais do Livro Verde, que respeitam a matérias críticas do sistema, justifica uma reflexão esclarecida por parte dos trabalhadores e das suas organizações e por todos quantos defendem a Segurança Social pública».
Participam neste debate por videoconferência, com início às 21h00, os especialistas convidados Vítor Junqueira (economista e membro da Comissão do Livro Verde), José Cid Proença (jurista e ex-Director Geral da Segurança Social) e Maria Clara Murteira (economista e professora da FEUC). A apresentação do tema e a moderação estão a cargo de Henrique Sousa (Praxis). O evento é aberto à participação de todos os interessados, bastando registar aqui a respetiva inscrição prévia.
O conteúdo das 18 recomendações principais do Livro Verde, que respeitam a matérias críticas do sistema, justifica uma reflexão esclarecida por parte dos trabalhadores e das suas organizações e por todos quantos defendem a Segurança Social pública».
Participam neste debate por videoconferência, com início às 21h00, os especialistas convidados Vítor Junqueira (economista e membro da Comissão do Livro Verde), José Cid Proença (jurista e ex-Director Geral da Segurança Social) e Maria Clara Murteira (economista e professora da FEUC). A apresentação do tema e a moderação estão a cargo de Henrique Sousa (Praxis). O evento é aberto à participação de todos os interessados, bastando registar aqui a respetiva inscrição prévia.
Afinal, para que servem as regras europeias?
O alerta mais recente da Comissão Europeia diz respeito aos riscos que as economias da UE enfrentam devido... às regras orçamentais que a própria Comissão impõe. É um tema que tem estado ausente do debate público por cá, mas tem implicações importantes para Portugal.
As regras orçamentais europeias, que voltaram a entrar em vigor este ano, exigem um esforço significativo de consolidação orçamental a boa parte dos países. Tal como anteriormente, o objetivo declarado continua a ser o de reduzir a dívida pública, que aumentou durante o combate à pandemia. A Comissão reconhece que, ao restringir a despesa/investimento dos Estados, as regras podem ser um entrave ao crescimento, mas justifica a sua aplicação com a necessidade de reduzir o nível de endividamento dos Estados.
No entanto, há motivos para pensar que os impactos negativos desta estratégia estão a ser subestimados. Um estudo publicado recentemente na Intereconomics analisa as hipóteses assumidas pela Comissão Europeia para avaliar a sustentabilidade da dívida pública. Entre estas, a mais relevante é a do multiplicador orçamental de 0,75: por cada €1 de aumento da despesa do Estado, assume-se que o PIB cresce €0,75, e vice-versa. Mas a maioria dos estudos sugere que, em regra, o valor do multiplicador é superior, sobretudo em períodos de recessão, o que significa que o impacto da despesa pública na economia é geralmente maior. Ao assumir um multiplicador muito baixo, a Comissão está a subestimar o impacto negativo que a restrição orçamental tem no desempenho das economias.
A discussão sobre multiplicadores não é nova. Foi a que esteve no centro do debate sobre os programas de austeridade na última crise financeira. Como o próprio FMI viria a reconhecer, ao subestimar o multiplicador, subestimou-se o impacto negativo da austeridade. Os resultados em países como a Grécia ou Portugal levaram o líder do FMI, Olivier Blanchard, a reconhecer o erro: "os analistas subestimaram significativamente o aumento do desemprego e a redução da procura interna resultantes da consolidação orçamental".
Este tipo de problemas de cálculo parece não ter desaparecido. E tem um grande impacto na forma como a Comissão avalia a sustentabilidade da dívida. Alterando as hipóteses sobre o multiplicador, os autores do estudo da Intereconomics mostram que a evolução dos rácios de dívida de França, Alemanha, Itália e Espanha é bastante pior que aquela que a Comissão prevê como resultado da aplicação das regras (como se vê no gráfico ao lado).
Além disso, se a consolidação orçamental for aplicada em vários países ao mesmo tempo, o impacto negativo no crescimento de uns afeta as trocas comerciais e o crescimento de outros (incluindo Portugal). E isso dificulta, em vez de promover, a redução sustentada da dívida. Nesse aspeto, as regras orçamentais que voltaram a entrar em vigor este ano não trouxeram mudanças de fundo na lógica de atuação das instituições europeias, apesar dos maus resultados do passado.
Ciência social da vida material
A entrevista do Negócios a José Reis (ver aqui ou aqui) não é de hoje. Foi publicada no passado dia 5, mas a sua leitura continua a justificar-se, claro. Desde logo por se iniciar a insistir no entendimento rico e plural da ciência económica: «Gosto de chamar à economia a disciplina que estuda a vida material. Outros dizem outras coisas: que estuda os mercados, que estuda as decisões individuais, ou a ciência que quantifica determinadas relações económicas». A ideia de «economia como a ciência da vida material e da deliberação coletiva», acrescenta.
É a partir daqui, deste entendimento de uma disciplina impura, que não dispensa o espaço nem o tempo, nem tampouco o diálogo com outras ciências sociais, que José Reis sinaliza o ciclo de crescimento e desenvolvimento associado ao 25 de Abril, marcado desde logo pela criação significativa de emprego, «o grande mecanismo de coesão social» que nos deve levar hoje a questionar o «perfil de especialização» produtiva da economia portuguesa: «Quando três quartos da mão-de-obra estão em setores cuja produtividade é inferior à média, às vezes muito inferior à média, temos um problema de criação de riqueza».
Apelando a uma discussão crítica da inserção europeia de Portugal, José Reis identifica três «desequilíbrios perante o exterior: produtivo, migratório e financeiro», sublinhando ainda, entre outros temas, a importância de as economias se autoestruturarem, e «não estarem dependentes de lógicas de abertura muito ousadas».
Li a entrevista no momento em que ecoava, na Casa da Democracia, um discurso miserável e equívocado sobre a descolonização. Também aqui, uma referência certeira: «no prazo de dias, não foi anos, tivemos meio milhão de pessoas. (...) Em dada altura, o Rossio era um grande sítio de aglomeração destas pessoas. Mas a maior parte dispersou-se rapidamente pelo território. É extraordinário que tenha acontecido. Temos aqui um dinamismo de uma sociedade e de uma economia que é forte. E que é um dinamismo para dentro, para a reorganização interna. Como sabemos, hoje temos dinamismos para fora».
terça-feira, 10 de dezembro de 2024
Juizinho, Baleiras
Rui Baleiras, coordenador da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), afiançou que “temos de ter juizinho” por causa do necessário aumento da comprimida despesa pública.
Já não é a primeira vez que este tecnocrata austeritário exibe em público o seu desprezo pelas suprancionalmente condicionadas instituições democráticas nacionais, exorbitando escandalosamente funções que exigem reserva e contenção.
Aposto que sonha com os cortes de Milei na Argentina. Reparai no colapso da despesa em ciência, tecnologia e inovação e no brutal aumento da despesa com espionagem nesse país causticado. Não é defeito, é feito neoliberal.
Juizinho, Baleiras.
segunda-feira, 9 de dezembro de 2024
Um jornal contra o assalto
[O]s neoliberais, que ainda há pouco impuseram a países como Portugal um austeritarismo ligado a uma crise financeira, preparam-se agora para fomentar um novo ciclo de austeridade, relacionada com uma crise «guerreira». Alguém tem dúvidas do que fará aos orçamentos dos Estados um aumento brutal das despesas com a defesa e a segurança? Das consequências que isso terá sobre os direitos, os salários, as pensões, os serviços públicos, as políticas sociais, culturais, ambientais? Ou sobre quem vai lucrar, em termos políticos e económicos, com a militarização e a securização na Europa?
A mesma União Europeia neoliberal que retirou aos Estados instrumentos de política económica, actualmente concentrados no Banco Central Europeu e no sistema financeiro internacional, vem agora dizer que não há alternativa a fazer os investimentos necessários, como disse António Costa na mesma ocasião, a «sermos mais autónomos em defesa e segurança». Mas onde estava a União Europeia quando a arquitectura internacional destinada a garantir a paz desde o pós-guerra foi sistematicamente corroída, desrespeitada, para favorecer todas as escaladas bélicas? «Temos de demonstrar que respondemos eficazmente às preocupações das pessoas», acrescentou o novo presidente do Conselho Europeu. Fazer de 2025 um ano de justiça e paz seria um bom começo.
Sandra Monteiro, A violência das novas direitas, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, dezembro de 2024.
domingo, 8 de dezembro de 2024
Precaução anti-imperialista
O Estado colonialista e genocida de Israel, apoiado pelos EUA como nenhum outro, rejubila, pela voz do seu criminoso Primeiro-Ministro, com os acontecimentos na Síria, ou não tivesse bombardeado maciçamente o país. Aproveita agora para expandir o seu mortífero projeto de ocupação, a partir dos ilegalmente ocupados montes Golã.
Incapazes de estabelecer ligações básicas, “progressistas” otanizados celebram não se percebe bem o quê desde ontem, tal como fizeram no Afeganistão, no Iraque ou na Líbia, com os resultados conhecidos.
Por muito que os fundamentalistas islâmicos da Al-Qaeda e sucedâneos sejam reabilitados pela máquina de propaganda ocidental, elevados ao estatuto quase apolítico de rebeldes, o dever de memória exige que nos lembremos de notícias do fim da história, pura precaução anti-imperialista. Todos têm a obrigação de saber quem os fabricou e fabrica.
sábado, 7 de dezembro de 2024
Parabéns
Ontem comecei a ler este livro, lançado este ano, e continuei a lê-lo hoje de manhã, antes do jogo de futebol do meu filho. Já há uns anos que não lia um livro seu. Por coincidência, faz hoje 96 anos.
Este é escrito em coautoria, sendo uma até agora ótima súmula, também para as mais jovens gerações, das principais preocupações de sempre deste imprescindível intelectual público, como nos informa o sociólogo e fundador da Current Affairs, Nathan J. Robinson, no prefácio que escreveu sozinho: “Aprendi [lendo-o] a questionar a sabedoria convencional e a analisar forensicamente os documentos governamentais e a comunicação social dominante.”
Aprende-se sempre com os melhores, incluindo a tentar não perder de vista a referência à verdade, sobretudo quando se está cercado pela ofuscação ideológica e pela mentira pura e dura.
Um dos pontos que desde logo me chamou atenção é a forma clara como os autores indicam que a combinação entre “economia de esquerda e nacionalismo político” sempre esteve literalmente na mira da política externa dos EUA, da Guatemala ao Irão, da Indonésia ao Chile, de Arbenz a Allende.
A doutrina do Conselho de Segurança Nacional dos EUA era clara logo em 1954: “regimes nacionalistas mantidos através de apelos às massas” tinham de ser removidos, anulados. Para uma esquerda europeia predominantemente desmemoriada, europeizada e otanizada, não há lembrete mais importante nas presentes circunstâncias históricas.
Lembrai-vos do golpe de Estado financeiro na Grécia, em 2015. A vassala UE serve para manter a ordem por aqui. Na Roménia, num contexto político radicalmente diferente, uma eleição acaba de ser escandalosamente anulada por causa do tik-tok. Não era conveniente do ponto de vista geopolítico. Vale tudo, valerá tudo, quando acumularmos potência plebeia suficiente.
O mito do idealismo norte-americano, fabricado pelos aparelhos ideológicos dominantes, tem de ser constantemente denunciado. Na realidade, trata-se de um realismo tão mortífero como um sistema capitalista que se quer sem freios e contrapesos.
A realidade violenta do sistema imperialista e das suas fontes de poder, também internas ao capitalismo dos EUA, tem de ser criticamente interpretada na sua totalidade, do holocausto na Palestina à catástrofe ambiental, passando pelo cerco à China: o passado ainda não passou, afinal de contas.
Parabéns, Noam Chomsky: “Se você assume que não existe esperança, então você garante que não haverá esperança”.
sexta-feira, 6 de dezembro de 2024
Lata imobiliária
O presidente da APPII, que andou em digressão pelo Brasil e pelos Estados Unidos a promover a compra de casas em Portugal, é o mesmo presidente da APPII que se queixou de a oposição, com exceção da IL, ter chumbado o pedido de Autorização Legislativa da AD para descer o IVA da construção para 6%. E que teve, ainda, o topete de pedir «coragem e sentido de Estado aos políticos nacionais para resolverem o problema da habitação», alegando que, por causa do referido chumbo, «os portugueses vão continuar sem ter uma casa que possam pagar».
Foi em São Paulo que, em outubro, Hugo Santos Ferreira reivindicou o regresso dos regimes de Residentes Não Habituais e Vistos Gold, alegando conhecer brasileiros interessados em viver em Portugal, pessoas «com altíssimo poder aquisitivo, (...) bilionários, para quem o tema segurança e atratividade fiscal é essencial». Isto antes de rumar aos EUA, para reunir com investidores que «querem conhecer as formas de ir para Portugal». Há o risco, em seu entender, de os milionários estrangeiros optarem por outros destinos, sendo necessário «colocar Portugal no mapa».
Como é improvável que Hugo Santos Ferreira, representante do setor imobiliário, desconheça o efeito de arrastamento dos preços das casas gerado pela procura externa, cujo poder aquisitivo supera, em média, o das famílias portuguesas, só por sonsise fingirá não perceber que este é um dos principais fatores que tem contribuído para a subida incessante dos preços, que faz com que os portugueses continuem «sem ter uma casa que possam pagar».
Não é difícil compreender que o imobiliário vive na sua própria bolha e trata da sua vidinha, defendendo a sua atividade e os seus negócios. Mas poupem-nos, por favor, a declarações piedosas que apenas visam ofuscar os interesses em jogo, criando uma ilusão de preocupação com a sociedade em geral e o acesso das famílias a uma casa para viver, em particular. Sobretudo quando, ao mesmo tempo, o setor contribui ativa e significativamente para que a capacidade de aceder à habitação seja uma miragem.
Capitalismo de guerra neoliberal
As coisas estão de tal forma más no capitalismo do Atlântico Norte que um cartaz soviético encerra uma mensagem poderosa e de grande atualidade.
Mark Rutte, o novo secretário-geral da OTAN, tão liberal quanto austeritário, sugeriu esta semana que os Estados gastem menos em funções sociais e mais em funções guerreiras. No tempo da Guerra Fria, tal escolha era mais difícil. Havia medo do socialismo.
Nada que surpreenda nesta tradição de economia política inscrita numa UE, criada em Maastricht na década de 1990, sempre vassala dos EUA: capitalismo assumidamente de guerra ao Estado social, afinal de contas. Já não havia medo do socialismo.
Entretanto, a UE continua a planear esverdear o investimento no ambientalmente danoso complexo militar-industrial, a sua primeira prioridade, classificando tal desperdício de “sustentável”.
É também para esta ofuscação que servem os verdes com bombas ou o social-liberalismo travestido de social-democracia, por exemplo. O anterior secretário-geral da OTAN vinha desta área política, também dita trabalhista na Noruega.
Sim, há uma esquerda otanizada que vai aceitar mais este pretexto para erodir o Estado social, a mesma que aceitou a austeridade em nome da integração europeia que destrói e aliena a sua base social de apoio.
E ainda ontem ficámos a saber pelo Financial Times que os países da UE estão a planear criar “um fundo de defesa” de 500 mil milhões de euros, uma engenharia financeira para dar dinheiro a ganhar aos grandes bancos e à indústria da morte, o capital financeiro na sua forma clássica.
Claramente, a luta anti-imperialista pela paz é hoje uma parte decisiva da luta para superar o capitalismo de guerra neoliberal prenhe de monstros neofascistas.
quinta-feira, 5 de dezembro de 2024
Genocídio e impunidade, complacência e cumplicidade
Num novo relatório de referência hoje publicado, a Amnistia Internacional encontrou fundamentos suficientes para concluir que «Israel cometeu e continua a cometer genocídio contra os palestinianos na Faixa de Gaza ocupada», desencadeando «o inferno e a destruição contra os palestinianos em Gaza de forma descarada, contínua e com total impunidade».
Para Agnès Callamard, secretária-geral da AI, o relatório «demonstra que Israel levou a cabo atos proibidos pela Convenção sobre o Genocídio, com a intenção específica de destruir os palestinianos em Gaza. Estes atos incluem assassinatos, causar lesões corporais ou mentais graves e infligir deliberadamente aos palestinianos em Gaza condições de vida calculadas para provocar a sua destruição física. Mês após mês, Israel tem tratado os palestinianos em Gaza como um grupo sub-humano indigno dos direitos humanos e da dignidade, demonstrando a sua intenção de os destruir fisicamente». E acrescenta: «as nossas conclusões condenatórias devem servir de alerta para a comunidade internacional: isto é genocídio. Tem de acabar já».
O alerta deixado por esta organização de defesa dos Direitos Humanos é por isso óbvio e claro: «os Estados que, neste momento, continuam a transferir armas para Israel devem saber que estão a violar a sua obrigação de prevenir o genocídio e correm o risco de se tornarem cúmplices do genocídio. Todos os Estados com influência sobre Israel, em especial os principais fornecedores de armas, como os EUA e a Alemanha, mas também mais Estados-Membros da UE, o Reino Unido e outros, devem agir agora para pôr termo imediato às atrocidades cometidas por Israel contra os palestinianos em Gaza».
Hoje, em Coimbra
No âmbito das Conversas Almedina, organizadas por Carlos Fiolhais, apresentação da obra «Nos 50 anos do 25 de abril - Memórias e reflexões sobre as mudanças da sociedade portuguesa», com a presença de Manuela Martins, Eloy Rodrigues e José Reis. A partir das 18h00, na livraria Almedina Estádio.
Baixar impostos à espera que chova... uma gota?
Um estudo publicado pelo Banco de Portugal esta semana inclui uma análise aos impactos da descida do IRC em 1 ponto percentual, aprovada no contexto do Orçamento do Estado para 2025. No melhor cenário, se as empresas reinvestirem todo o lucro adicional, a redução do IRC aprovada no OE 2025 leva a um crescimento extra de... 0,1% no longo prazo. Se, em vez disso, as empresas optarem por distribuir os ganhos adicionais pelos acionistas, o impacto para a atividade económica torna-se mesmo negativo.
Se já havia poucos motivos para crer que a redução do IRC era a bala de prata para acelerar o crescimento da economia portuguesa, as conclusões do estudo do Banco de Portugal reforçam essa ideia. O que se sabe é que as principais beneficiadas desta medida serão as grandes empresas, sobretudo em setores que não podem queixar-se de falta de lucros nos últimos anos.
As conclusões do estudo dão força à ideia de que a relação entre a fiscalidade e o crescimento económico é tudo menos linear. Uma revisão de literatura recente, que avaliou dezenas de estudos empíricos publicados, concluiu que os resultados são inconclusivos: não é possível afirmar, com base nos estudos disponíveis, que baixar impostos às empresas estimula o crescimento.
Isso implica colocar a questão: quem beneficia verdadeiramente desta medida? Em Portugal, é preciso ter em conta que os ganhos se concentram nas 0,4% maiores empresas do país, que pagam quase metade da receita atual.
Além da dimensão das empresas beneficiadas, se olharmos para o IRC liquidado por setor, o que vemos é que a maior parte da receita é proveniente de cinco setores: o setor financeiro, o imobiliário, a construção, o alojamento e restauração e o comércio.
Estes dados dizem-nos duas coisas:
1. Uma redução do IRC beneficia de forma desproporcional as grandes empresas;
2. Em termos setoriais, a maior parte dos ganhos concentra-se em setores com pouco potencial para a transformação estrutural da economia portuguesa.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2024
Arrastamento
Quem resume a atual crise de habitação a uma mera falta de casas, como sucede no caso da direita política ou entre agentes do setor imobiliário e da construção, tende a negligenciar - ou mesmo negar - o impacto das novas procuras no aumento dos preços. Isto é, não só desvaloriza a transferência de casas para o setor do turismo (sobretudo através do Alojamento Local), como a procura imobiliária por parte de estrangeiros e nacionais, como forma de valorização de rendimentos e poupanças.
Para sustentar esta desvalorização do impacto das novas procuras na formação de preços - que o Banco de Portugal, num estudo recente, chegou a designar por «choque de procuras» - é recorrente o argumento de que estas não são relevantes. No caso da aquisição de imóveis por estrangeiros, por exemplo, assinala-se que o volume de transações é escasso, oscilando apenas, nos últimos anos, entre 5% e 7% do total (mesmo que, no caso do Algarve, essa percentagem tenha atingido os 27% em junho de 2024).
O primeiro equívoco a assinalar diz respeito ao facto de as novas procuras não funcionarem de forma isolada, mas sim em conjunto e segundo uma lógica de incidência territorial cumulativa. Por outro lado, importa considerar que em muitos casos essas novas procuras - como sucede na compra de imóveis por estrangeiros - têm uma maior capacidade aquisitiva, desencadeando naturalmente, por arrastamento, a subida dos preços.
De facto, quando se analisa o valor mediano das transações segundo o domicílio fiscal do comprador (como ilustra o gráfico aqui em cima), constata-se que a diferença por m2, à escala nacional, quase atinge os 700€. Ou seja, a mediana da transação é cerca de 700€ mais elevada no caso de compradores estrangeiros, face ao valor pago por compradores nacionais. Sendo que, não menos importante, esse diferencial tende a ser mais acentuado nas regiões onde os preços das habitações são mais elevados, com destaque para os casos de Lisboa (quase 1.800€ de diferença) e da Grande Lisboa (com a diferença a rondar os 2.000€), mas também no caso do Porto e do Algarve.
Para sustentar esta desvalorização do impacto das novas procuras na formação de preços - que o Banco de Portugal, num estudo recente, chegou a designar por «choque de procuras» - é recorrente o argumento de que estas não são relevantes. No caso da aquisição de imóveis por estrangeiros, por exemplo, assinala-se que o volume de transações é escasso, oscilando apenas, nos últimos anos, entre 5% e 7% do total (mesmo que, no caso do Algarve, essa percentagem tenha atingido os 27% em junho de 2024).
O primeiro equívoco a assinalar diz respeito ao facto de as novas procuras não funcionarem de forma isolada, mas sim em conjunto e segundo uma lógica de incidência territorial cumulativa. Por outro lado, importa considerar que em muitos casos essas novas procuras - como sucede na compra de imóveis por estrangeiros - têm uma maior capacidade aquisitiva, desencadeando naturalmente, por arrastamento, a subida dos preços.
De facto, quando se analisa o valor mediano das transações segundo o domicílio fiscal do comprador (como ilustra o gráfico aqui em cima), constata-se que a diferença por m2, à escala nacional, quase atinge os 700€. Ou seja, a mediana da transação é cerca de 700€ mais elevada no caso de compradores estrangeiros, face ao valor pago por compradores nacionais. Sendo que, não menos importante, esse diferencial tende a ser mais acentuado nas regiões onde os preços das habitações são mais elevados, com destaque para os casos de Lisboa (quase 1.800€ de diferença) e da Grande Lisboa (com a diferença a rondar os 2.000€), mas também no caso do Porto e do Algarve.
terça-feira, 3 de dezembro de 2024
OE 2025: que vida para além das contas certas?
Apesar do Orçamento do Estado para 2025 ter acabado por ser viabilizado pelos dois principais partidos (PSD e PS), isso não impediu os protagonistas de sublinhar o que os separa. Uma das frases com que o primeiro-ministro marcou o debate orçamental foi a de que “o equilíbrio das contas não é o fim da nossa política”. Luís Montenegro afirmou que “há vida para além do excedente orçamental”, numa tentativa clara de vincar a diferença face à estratégia dos governos de António Costa.
Este é um assunto que já vem de trás. Há um ano, na discussão do OE 2024, enquanto líder do PSD na oposição, Montenegro disse que o orçamento era “só aparência, […] parece que faz, mas não faz, apresenta objetivos, ideias, mas depois não concretiza nada” e limita-se a “desinvestir, desinvestir, desinvestir”. Montenegro criticou também o governo anterior por ir “à Europa exigir uma coisa que não faz em Portugal” e recorrer ao “maior instrumento de financiamento que tivemos desde que entrámos na União Europeia, o PRR, para suprir as lacunas de investimento público dos últimos oito anos de governos socialistas”.
Há poucas dúvidas de que o investimento público foi a principal vítima da estratégia das contas certas nos últimos anos. No entanto, assim que chegou ao governo, o PSD parece ter abandonado esta prioridade. Na análise que a Comissão publicou com a comparação dos planos de médio-prazo apresentados pelos vários países, Portugal surge na cauda da Europa: é o país que se compromete a financiar o menor nível de investimento público em toda a União Europeia.
A projeção do investimento público para os próximos anos é ainda mais problemática quando olhamos para o ponto de partida. Ao longo da última década, o país registou os níveis mais baixos de investimento público da sua história recente. O investimento público “líquido”, que representa o saldo entre a formação bruta de capital fixo (isto é, o valor investido em obras públicas, equipamentos, I&D, software, etc.) e o consumo de capital fixo (que mede o que se vai perdendo com o desgaste dessas obras públicas e equipamentos), tornou-se negativo neste período. Por outras palavras, o que o Estado investe nem chega para compensar o desgaste das infraestruturas.
Se olharmos para a última década, Portugal foi o segundo país da União Europeia em que o Estado menos investiu em percentagem do PIB (sendo que o único país que regista uma percentagem de investimento público inferior – a Irlanda – tem o PIB manifestamente inflacionado, o que torna a leitura deste indicador menos clara).
Os níveis de investimento público nunca recuperaram verdadeiramente desde o programa de ajustamento da Troika, apesar das sucessivas promessas de investimento que nunca saíram da gaveta. Isso traduziu-se na deterioração da qualidade dos serviços públicos, que têm perdido credibilidade como consequência das opções orçamentais. E os sinais que o atual governo tem dado não são menos preocupantes.
No Serviço Nacional de Saúde, a opção passa por promover ainda mais o recurso aos privados e canalizar o dinheiro público para este negócio com medidas como os vouchers-cirurgia. Em relação aos transportes, depois de décadas a encerrar linhas ferroviárias, o governo anunciou a intenção de… reduzir significativamente o investimento previsto da CP para a alta velocidade, com a justificação de que “é saudável para o mercado [o Estado] não investir tanto em comboios”. Na habitação, temos um dos mais reduzidos parques habitacionais públicos da União Europeia e há falhas significativas na manutenção da pouca habitação social existente, mas a grande bandeira do governo tem sido a descida de impostos.
A verdade é que é difícil perceber que vida é que existe além das contas certas. Como explicou o ministro das Finanças, o “compromisso” do governo é o de “continuar a manter as contas públicas equilibradas e continuar a reduzir a dívida pública”, para que “ninguém duvide do nosso compromisso com o rigor orçamental”. Só que não há uma contradição entre a promoção do investimento público e a sustentabilidade das contas do Estado. A maioria dos estudos sobre o efeito multiplicador – isto é, o impacto que a política orçamental tem no funcionamento da economia – conclui que este é superior a 1: por cada aumento de 1 euro na despesa (e, sobretudo, no investimento) do setor público, o PIB cresce mais do que 1 euro. Ou seja, os benefícios que o investimento gera para a economia não só compensam, como tendem a superar os seus custos iniciais.
O investimento do Estado não se limita a melhorar a qualidade dos serviços públicos. É também um instrumento que permite reorganizar o território e promover mudanças estruturais no país, para lá da lógica do mercado. Por exemplo: um plano abrangente de investimento na ferrovia não serve apenas para melhorar a mobilidade e a qualidade de vida de quem se desloca diariamente para o trabalho, mas também permite promover um desenvolvimento mais equilibrado em termos territoriais, reduzindo a pressão sobre os preços da habitação no centro das grandes cidades, que tem afastado não apenas as pessoas, mas também muitas atividades económicas, enquanto se expandem o turismo e outros serviços de baixo valor acrescentado. Além disso, é uma forma de reduzir as emissões de carbono através da substituição dos automóveis privados, o que diminui a dependência energética do país face ao exterior.
Adiar os investimentos necessários é uma escolha que tem saído cara para a maioria das pessoas. O desinvestimento traduz-se não apenas na perda de qualidade dos serviços públicos, mas também na ausência de uma estratégia de desenvolvimento económico e territorial que não responda apenas aos incentivos do mercado.
O bom pobre de Isabel Jonet
Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.
António Lobo Antunes, Os pobrezinhos.
No final da história, a atração pela gravura revolucionária, pelo ato de “proteção da nação”, é mais do que compreensível. Foi Constança Cunha e Sá, felizmente regressada, que, a propósito de Isabel Jonet, lembrou Lobo Antunes.
O capitalismo televisivo sem freios e contrapesos há muito que decidiu prescindir do comentário desta excelente jornalista política. Não encaixa no coro com sotaque de classe dos Bernardos Ferrões. O pessoal é político: o meu filho nasceu em 2011, luz em tempos sombrios; quando a via na televisão, eu dizia, “força Constança, dá-lhes na pança” e ele ria-se muito.
Entretanto, Isabel Jonet garantiu: “Não ganho um tostão há 25 anos. Sou voluntária. É quase uma missão de vida”. Carina Castro respondeu-lhe bem: “O luxo de ser voluntária como vida e não como entrega solidária, mas subsidiária da vida que se gasta a ganhar a vida. Quanta fortuna será preciso para poder ‘não ganhar um tostão há 25 anos’?”
Aproveito também para relembrar Luísa Semedo, quando denunciou uma das tiradas imorais de Isabel Jonet –“em Portugal há quase um incentivo às pessoas quererem mais apoios sociais e menos responsabilidade na própria vida” –, aproveitando para resumir com fina ironia todo este programa de sociedade liberal até dizer chega:
“Dá-nos aqui algumas pistas úteis para caracterizar o que deve ser um bom pobre de família. Deve ser uma pessoa responsável, evidentemente sem dinheiro, mas que poupa naquilo que não tem e sobretudo não o gasta de uma só vez. E para isso precisa de ser formada ao que Isabel Jonet chama de racionalidade económica ou, em linguagem de pobre de família, de magia económica.”
segunda-feira, 2 de dezembro de 2024
Javier
Na The Economist, uma coisa é a secção do obituário, que encerra a revista, outra coisa são os editoriais: na mesma semana em que presta um comovente tributo a Celeste Caeiro, esta revista liberal apoia Milei, em linha com o apoio que deu a Pinochet a seu tempo, por exemplo.
Reconhece-se que a taxa de pobreza aumentou de 40% para 54% durante este ano de presidência do argentino, mas os pobres são o preço a pagar pelo fabrico de ricos no liberalismo realmente existente. Na periferia, são também o preço a pagar pela pilhagem internacional dos recursos nacionais ou não fosse esta revista uma das mais clássicas encarnações, desde a sua fundação, do imperialismo de comércio livre.
Os liberais até dizer chega, sem surpresa, identificam-se com Milei.
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